quinta-feira, 29 de abril de 2010

O Amor de Deus

A declaração repetida duas vezes por João: "Deus é amor" (1Jo 4:8,16) é um dos pronunciamentos mais tremendos da Bíblia — e também um dos menos entendidos. Idéias falsas cresceram à sua volta como uma cerca de espinhos, ocultando o significado real, e não é tarefa fácil atravessar esse aglomerado de vegetação mental. Entretanto, quanto maior a dificuldade envolvida maior é a recompensa quando o verdadeiro sentido desses textos são captados pela alma cristã. Quem sobe uma alta montanha não reclama do esforço ao contemplar o cenário que se descortina do topo!
Na verdade, feliz é quem pode repetir com João as palavras da sentença que precede o segundo "Deus é amor", "Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor" (v. 16). Conhecer o amor de Deus é na verdade o céu na terra. O Novo Testamento mostra este conhecimento não como privilégio de uns poucos favorecidos, mas como parte normal da experiência comum do cristão, algo estranho àqueles cuja espiritualidade é pouco sadia ou malformada. Quando Paulo diz: "... Deus derramou seu amor em nossos corações, por meio do Espírito Santo que ele nos concedeu" (Rm 5:5), ele não se refere ao amor de Deus, como pensava Agostinho, mas ao conhecimento do amor de Deus por nós. Embora nunca chegasse a conhecer pessoalmente os cristãos de Roma a quem escrevia, Paulo tinha certeza de que a afirmação seria verdadeira para eles como era para si mesmo.

UMA TORRENTE DE AMOR
Há três pontos nas palavras de Paulo que merecem ser comentados. Primeiro note o verbo derramou. Seu sentido literal é "despejou". É a palavra usada no "derramamento" do Espírito Santo em Atos 2:17,18,33; 10:45; Tito 3:6, sugerindo fluxo livre e grande quantidade — aliás, uma inundação. Paulo não fala de impressões vagas e incertas, mas de coisas profundas e irresistíveis.
Em segundo lugar observe o tempo do verbo. Está no perfeito, indicando uma situação estabelecida como conseqüência de uma ação completa. A idéia é que o conhecimento do amor de Deus, tendo inundado nosso coração, continua a enchê-lo agora, como um vale, que uma vez inundado permanece cheio de água. Paulo compreende que todos seus leitores, assim como ele mesmo, viverão na alegria da forte e permanente certeza do amor de Deus para com eles.
Em terceiro lugar, observe que a instilação desse conhecimento é descrita como parte do ministério normal do Espírito para. aqueles que o recebem — a todos, isto é, aos que nasceram de novo, todos os que crêem realmente. Seria desejável que esse aspecto de seu ministério fosse hoje mais valorizado do que de fato é. Com uma obstinação tão patética quanto empobrecedora, temo-nos preocupado hoje com os ministérios extraordinários, esporádicos e restritos do Espírito, negligenciando os comuns e gerais. Assim, mostramos muito maior interesse pelos dons de cura e de línguas — dons dos quais, segundo Paulo, nem todos os cristãos participarão (1Co 12:28-30) — que pelo trabalho normal do Espírito de conceder paz, alegria, esperança e amor por meio do derramamento do conhecimento de Deus em nosso coração. Este ministério, porém, é muito mais importante que o anterior. Para os coríntios, que tinham por certo que quanto mais falassem em línguas mais alegres e piedosos seriam, Paulo teve de insistir que sem amor — santificação, semelhança com Cristo — o dom de línguas não tinha valor algum (1Co 13:1).
Sem dúvida alguma Paulo veria motivo para tal admoestação também hoje. Será trágico se a preocupação com o reavivamento presentemente manifestado em muitos lugares se desviar para o beco sem saída de um novo "corintismo". A melhor coisa que Paulo podia desejar para os efé-sios, no que se refere ao Espírito, era que ele conseguisse dar continuidade ao ministério de Romanos 5:5 com um poder cada vez maior, levando-os ao conhecimento mais e mais profundo do amor de Deus em Cristo. Efésios 3:14-19 apresenta muito bem essa idéia:
Por essa razão, ajoelho-me diante do Pai [...] para que [...] ele os fortaleça no íntimo do seu ser com poder, por meio do seu Espírito [...] para, juntamente com todos os santos, compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, e conhecer o amor de Cristo que excede todo o conhecimento...
Reavivamento quer dizer a ação de Deus de devolver a uma igreja moribunda, de maneira fora do comum, padrões de vida e experiência cristã estabelecidos pelo Novo Testamento como inteiramente normais. Não é o desejo ansioso de falar em línguas (pois, no final das contas, não tem importância alguma o fato de falarmos línguas ou não) que expressará uma preocupação correta com o reavivamento, mas sim o desejo ardente de que o Espírito derrame o amor divino em nosso coração com grande poder. Pois é com isso (ao qual o profundo interesse da alma no que diz respeito ao pecado é muitas vezes preliminar) que começa o reavivamento pessoal, e por meio dele o reavivamento na igreja, uma vez começado, é mantido.
Nosso objetivo neste capítulo é mostrar a natureza do amor divino derramado pelo Espírito. Com este propósito fixamos nossa atenção na grande afirmativa joanina de que Deus é amor: em outras palavras, o amor que ele mostra às pessoas, o qual os cristãos conhecem e no qual se alegram, é a revelação de seu próprio ser interior. Nosso tema nos fará aprofundar no mistério da natureza de Deus tanto quanto foi possível à mente humana, mais profundamente que nossos estudos anteriores.
Quando estudamos a sabedoria de Deus, vimos alguma coisa de sua mente; quando pensamos em seu poder, vimos um pouco de sua mão e de seu braço; quando consideramos sua palavra, aprendemos algo sobre sua boca, mas agora, contemplando seu amor, veremos seu coração. Estaremos pisando solo sagrado, precisamos da graça da reverência para que possamos pisar nele sem pecar.
AMOR, ESPÍRITO E LUZ
Dois comentários gerais sobre essa afirmação de João serão úteis agora.
1. "Deus é amor" não é a verdade completa sobre Deus, no que diz respeito à Bíblia. Esta não é uma definição abstrata, isolada; mas um resumo, da perspectiva do cristão, do que a revelação feita nas Escrituras nos fala sobre seu Autor. Esta afirmação pressupõe o resto do testemunho bíblico sobre Deus. O Deus sobre o qual João fala é o Deus que fez O mundo, que o condenou pelo dilúvio, que chamou Abraão e fez dele uma nação, que disciplinou seu povo do Antigo Testamento pela conquista, cativeiro e exílio, que enviou seu Filho para salvar o mundo, que afastou o Israel incrédulo, que pouco antes de João haver escrito havia destruído Jerusalém e que um dia julgará o mundo com justiça. Esse Deus, diz João, é amor.
É errado citar essa afirmação de João, como muitos o fazem, como se ela levantasse dúvidas sobre o testemunho bíblico da severidade da justiça divina. Não é possível argumentar que o Deus amoroso não possa também ser o Deus que condena e castiga o desobediente, pois é precisamente do Deus que age assim que João está falando.
Se quisermos evitar um mal-entendido a respeito da afirmação de João, devemos torná-la associando-a com outras duas grandes declarações que apresentam a mesma forma gramatical encontrada em outros pontos de seus escritos. Interessante que ambas partiram do próprio Cristo. A primeira está no evangelho de João. São as palavras de nosso Senhor à samaritana: "Deus é espírito" (Jo 4:24). A segunda está no começo da primeira epístola. João a apresenta como resumo da "mensagem que dele (Jesus) ouvimos e transmitimos a vocês: Deus é luz" (1Jo 1:5). A afirmação de que Deus é amor deve ser interpretada conforme os ensinamentos destas duas declarações e será útil fazermos agora um breve estudo delas.
Deus é espírito. Quando nosso Senhor disse isso, ele procurava fazer a samaritana abandonar a idéia de que havia apenas um lugar adequado para a adoração, como se Deus estivesse confinado de algum modo a algum lugar. "Espírito" contrasta com "carne". A idéia central de Cristo era que o homem, sendo "carne", só pode estar presente em um lugar de cada vez. Deus, porém, sendo "espírito", não está assim limitado. Deus não é material, não tem corpo, portanto, não fica confinado a um lugar. Por isso (Cristo continua), a verdadeira condição da adoração aceitável não é estar em Jerusalém, Samaria ou em qualquer outro lugar, mas o importante é que seu coração seja receptivo e responda à revelação dele. "Deus é espírito; e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade" (Jo 4:24).
O primeiro dos Trinta e nove artigos de religião expressa o significado da "espiritualidade de Deus" (como dizem os livros) pela asserção bastante estranha de que ele é "sem corpo, sem partes nem paixões".1 Alguma coisa muito positiva é expressa por essas três negativas.
Deus não tem corpo — portanto, como já dissemos, ele está livre das limitações do espaço e da distância, e é onipresente. Deus não tem partes — isto significa que sua personalidade, poderes e qualidades estão perfeitamente integrados, assim nada nele se altera. Ele "não muda como sombras inconstantes" (Tg 1:17). Assim, ele é livre de todas as limitações de tempo e dos processos naturais, e permanece eternamente o mesmo.
Deus não tem paixões — isto não quer dizer que ele seja insensível (impassível) ou que não haja nada nele que corresponda a nossas emoções e afeições. Entretanto, considerando que as paixões humanas,
1Livro de oração comum, p. 603.